O que os Números do Feminicídio Não Deixam Você Ver

A Contabilidade do Horror: O que os Números do Feminicídio Não Deixam Você Ver

1. Introdução: A Narrativa Que Se Repete (e Lucra)

Em 2024, ao menos quatro mulheres foram mortas por dia no Brasil, vítimas de feminicídio. Este número, divulgado anualmente com a pontualidade de um balanço fiscal, não é uma tragédia surpreendente. É o resultado previsível e funcional de uma estrutura de poder que opera com a precisão de um relógio. A compilação de dados, apresentada como “uma narrativa que se repete” pelo próprio Anuário Brasileiro de Segurança Pública, tornou-se um ritual performático: a sociedade se choca, a mídia produz manchetes sobre o “cenário alarmante” e o Estado responde com o de sempre — aumento de penas e campanhas de conscientização. Essas respostas, contudo, servem menos para desmontar as causas da violência e mais para gerenciar a percepção pública do horror, garantindo que, no ano seguinte, a contabilidade dos corpos possa ser reiniciada sem que nada fundamental tenha mudado.

2. A Necropolítica de Planilha: Contando Corpos Como Política Pública

A produção de estatísticas sobre a violência de gênero funciona como um espetáculo de transparência que mascara a inércia estrutural. A cada ano, a sociedade recebe sua dose de números para que acredite que o problema está sendo “monitorado” e, portanto, “controlado”.

O Espetáculo dos Dados

Até outubro de 2025, São Paulo já registrava um recorde de 53 feminicídios na capital e 207 no estado. Em 2024, o Brasil somou 1.492 vítimas. Esses números são tratados como indicadores de desempenho em um balanço corporativo da morte, onde o crescimento da carnificina é apenas mais um ponto a ser discutido na próxima reunião de planejamento estratégico.

O slogan do Anuário — “Informação para gerar transformação” — é desmontado pela própria realidade que ele descreve. Que “transformação” é gerada quando a única resposta visível é a repetição da mesma “narrativa” de violência, seguida pela mesma compilação de dados? A função desses relatórios não é transformar, mas sim administrar a crise. Eles criam uma ilusão de controle e ordenamento, tabulando o caos para que as estruturas de dominação que produzem os cadáveres permaneçam intactas e fora de questionamento.

3. A Anatomia do Descarte: O Perfil da Vítima Como Sentença

A análise do perfil das vítimas expõe que a violência não é aleatória, mas seletiva e estrutural. O feminicídio é um projeto de extermínio com alvo definido.

  • Local do crime: 64,3% das vítimas de feminicídio são mortas dentro da própria residência.
  • Autor do crime: 60,7% são assassinadas pelo companheiro e 19,1% pelo ex-companheiro.

O lar, idealizado como espaço de segurança, funciona, na prática, como o principal centro de extermínio de mulheres. O perpetrador não é um estranho à espreita, mas aquele que prometeu amor e proteção. A romantização do “crime passional” desmorona para revelar sua verdadeira natureza: a execução de uma posse, a afirmação final de domínio sobre um corpo que ousou reivindicar autonomia.

Dos casos em que a informação racial foi registrada, a maioria das vítimas é negra. Contudo, o dado central aqui não é a proporção, mas a ausência. A “perda considerável dos registros de raça”, onde cerca de 20% dos casos de feminicídio não possuem essa informação preenchida, não é uma falha técnica. É um projeto político. O apagamento estatístico torna certas vidas invisíveis, menos dignas de luto, de política pública e de indignação. A quem serve o silêncio sobre a cor dos corpos empilhados?

4. O Teatro da Proteção: A Burocracia da Morte Anunciada

Os mecanismos estatais de proteção operam como uma encenação burocrática, cuja ineficácia é comprovada pela pilha de corpos de mulheres que acreditaram em sua promessa. A Medida Protetiva de Urgência (MPU) é o principal artefato desse teatro.

A Promessa da ProteçãoA Realidade da Execução
Mais de 1 milhão de chamadas ao 190 por violência doméstica em 2024.A cada minuto, ao menos duas ligações são feitas, mostrando o desespero constante.
555.001 MPUs concedidas em 2024, um aumento de 6,6%.101.656 registros de descumprimento de MPUs, um aumento de 10,8%.
O Estado emite um documento oficial para “proteger”.Ao menos 121 mulheres foram assassinadas em 2023 e 2024 enquanto possuíam uma MPU ativa.

A MPU funciona como um dispositivo ideológico. É a materialização da resposta do Estado: um pedaço de papel entregue à vítima. Com ele, o Estado transfere a responsabilidade pela segurança para a própria mulher, que deve fiscalizar seu agressor e acionar a polícia quando a ordem é violada. Quando o papel falha em parar uma faca ou uma bala, o sistema se isenta da culpa. A falha não é do Estado, que “fez sua parte”, mas do agressor que “descumpriu a ordem” ou da vítima que “não denunciou a tempo”. A burocracia serve para absolver o sistema, não para salvar a mulher.

5. A Nova Mercadoria do Punitivismo: Mais Anos de Prisão, Mesmos Caixões

Diante da falência de suas políticas de proteção, o Estado oferece sua mercadoria mais vendável: o punitivismo. A recente alteração legislativa que tornou o feminicídio um crime autônomo é o exemplo perfeito dessa lógica.

A Lei nº 14.994/2024 elevou a pena para 20 a 40 anos, uma medida celebrada como um grande avanço. No entanto, o próprio Anuário expressa preocupação com o foco excessivo no punitivismo, reconhecendo que essa é a resposta mais fácil e midiática. Vende-se mais punição como se fosse prevenção. Endurecer a pena para um crime que, por definição, termina com a morte da vítima, é uma lógica absurda. Ignora-se completamente a necessidade de políticas que impeçam o crime de acontecer em primeiro lugar.

Citando o conceito de Marcela Lagarde, o feminicídio é uma forma de “violência estatal”. O Estado é omisso na prevenção e, para compensar sua negligência, oferece o espetáculo de uma punição mais severa após a morte. Com isso, reforça seu poder penal e sua imagem de protetor, sem salvar uma única vida.

6. Conclusão: Para Além do Luto, Fissuras na Estrutura

O aumento do feminicídio não é uma falha no sistema; é o sistema funcionando como projetado em uma sociedade patriarcal. As respostas do Estado — relatórios anuais, leis punitivas, medidas burocráticas — são parte de um teatro de controle que legitima sua própria existência enquanto a violência persiste.

É preciso abandonar o discurso que implora por “políticas públicas mais eficazes” a um Estado que se beneficia da gestão da crise. A verdadeira fissura na estrutura não virá de cima para baixo. A segurança real não virá de mais leis, de penas mais duras ou da benevolência de instituições que lucram com a “narrativa que se repete”.

A saída está na construção de autonomia e segurança a partir das bases. A segurança virá da organização coletiva, de redes de apoio mútuo que funcionem onde o Estado falha, e da confrontação direta com as estruturas — sociais, econômicas e culturais — que sustentam a violência. É preciso construir alternativas fora e à parte das instituições que administram a contabilidade do nosso horror.

Fontes:

https://odia.ig.com.br/cabo-frio/2025/11/7159550-caso-rose-justica-mantem-prisao-de-empresario-alexu-rosa-acusado-de-tentar-matar-ex-mulher-em-cabo-frio.html

https://atribunarj.com.br/materia/suspeito-de-esfaquear-rose-rosa-em-cabo-frio-se-entrega-a-policia-civil

https://odia.ig.com.br/cabo-frio/2025/11/7158057-empresaria-cabo-friense-se-recupera-apos-tentativa-de-feminicidio-ex-marido-segue-foragido.html

https://odia.ig.com.br/cabo-frio/2025/11/7160063-rose-rosa-recebe-apoio-psicologico-e-grava-video-com-especialista-em-violencia-domestica-em-cabo-frio.html

https://enfoco.com.br/noticias/policia/rose-fitness-preso-acusado-de-tentar-matar-empresaria-de-cabo-frio-134689

https://odia.ig.com.br/cabo-frio/2025/11/7158086-acusado-de-esfaquear-empresaria-rose-rosa-em-cabo-frio-ex-marido-alexu-rosa-grava-video-debochando-da-vitima-e-faz-novas-ameacas.html

https://www.tupi.fm/sentinelas/homem-e-preso-apos-tentar-matar-companheira-com-20-facadas/

https://odia.ig.com.br/cabo-frio/2025/11/7159432-audiencia-de-custodia-de-alexu-rosa-esta-marcada-para-esta-sexta-feira-7-em-cabo-frio.html

https://g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/2025/11/06/suspeito-de-tentativa-de-feminicidio-em-cabo-frio-se-entrega-a-policia.ghtml

https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2025/07/7210171-casos-de-feminicidio-no-brasil-alcancam-o-pior-indice-em-2024.html

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2025-07/mortes-intencionais-caem-54-no-pais-em-2024-feminicidios-sobem-19

https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2025/07/anuario-2025.pdf

https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/07/24/anuario-brasileiro-da-seguranca-publica-mortes.ghtml

https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2025/07/24/mortes-violentas-caem-mas-numero-de-feminicidios-bate-recorde-diz-forum-brasileiro-de-seguranca-publica.ghtml

https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-e-fontes/pesquisa/19o-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica-fbsp-2025

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2025-12/2025-ja-e-o-ano-com-maior-numero-de-feminicidios-na-capital-paulista

https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/brasil-tem-novo-recorde-de-casos-de-feminicidios-e-estupros-diz-fBSP1

https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2025/07/20/numero-de-feminicidios-no-primeiro-semestre-de-2025-e-o-segundo-pior-dos-ultimos-dez-anos-na-paraiba.ghtml

https://www12.senado.leg.br/radio/1/pautas-femininas/2025/08/28/aumento-dos-casos-de-feminicidio-no-brasil

https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/feminicidio-quatro-mulheres-sao-assassinadas-por-dia-no-brasil

https://www.gov.br/mulheres/pt-br/central-de-conteudos/noticias/2025/marco/ministerio-das-mulheres-lanca-o-relatorio-anual-socioeconomico-da-mulher-raseam-2025

https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/homicidios-contra-mulheres-cresce-no-brasil-revela-atlas-da-violencia-20251

https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-03/brasil-registra-1450-feminicidios-em-2024-12-mais-que-ano-anterior

https://www.cepal.org/en/pressreleases/least-11-women-are-victims-femicide-every-day-latin-america-and-caribbean

https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-03/cada-17-horas-ao-menos-uma-mulher-foi-vitima-de-feminicidio-em-2024

https://noticias.r7.com/internacional/feminicidio-nao-se-restringe-ao-brasil-e-ja-e-considerado-uma-crise-global-segundo-a-onu-06122025

https://brasil.un.org/pt-br/284409-feminic%C3%ADdios-em-2023-estimativas-globais-de-feminic%C3%ADdios-por-parceiro-%C3%ADntimo-ou-membro-da

https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/feminicidio-brasil-e-o-5-pais-em-morte-violentas-de-mulheres-no-mundo.htm

https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/232-direitos-fundamentais/6556-brasil-ocupa-o-7-lugar-no-ranking-de-assassinatos-de-mulheres-no-mundo

https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/07/25/assassinatos-atingem-menor-nivel-mas-feminicidios-e-desaparecimentos-sobem.ghtml

https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/brasil-tem-novo-recorde-de-casos-de-feminicidios-e-estupros-diz-fBSP1

https://www.cepal.org/en/pressreleases/eclac-least-19254-femicides-have-been-registered-last-five-years-latin-america-and

https://www.statista.com/topics/6437/femicide-in-latin-america

https://www.statista.com/statistics/827170/number-femicide-victims-latin-america-by-country

https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/statistics/crime/global_femicide_meeting_2025/session_8/Session8_ECLAC.pdf

https://hir.harvard.edu/femicide-in-brazil-inter-american-condemnation

https://www.humanrightsresearch.org/post/femicide-in-latin-america


Publicado

em

por

Tags:

Comentários

Deixe um comentário